17 outubro 2008

Madalena

Buscava somente uma oportunidade de libertação. Não esperava mais do que simplesmente uma breve sensação de respirar uma nova atmosfera, enxergar um distinto horizonte, e dormir em uma hora diferente algum dia.


Preparou-se para isso durante anos. Todos os dias conservava uma maleta de emergência, com roupas, acessórios e até mesmo alimentos, sistematicamente trocados para não ser pego de surpresa, seja com uma camisa amarrotada, seja com um biscoito "verde". Trabalhava mais do que necessitava a fim de preservar uma boa quantia no fim do mês, para a grande empreitada.


Hoje Rafael acordou diferente. Enjoado e dolorido, não verificou a maleta, não leu o jornal. Não foi trabalhar. Ficou ali, parado no meio da casa, de calça de flanela e pantufas do Garfield. Não tinha idade para tal aparência, mas não se importava.


Foi à geladeira e notou que não havia comida. Tomou rumo ao quarto a fim de trocar-e para comprar o pão quando se assustou em ver que não lhe sobrara uma única peça de roupa limpa nesta semana. Tomou um banho rápido com o toco de sabonete e um melado de xampu que lhe restara. Vestiu a roupa menos amarrotada com tamanho nojo que se podia jurar que estava pisando em excremento.


Olhou para a casa. Percebeu que de tanto pensar na bendita fuga, não se importou com a falta de condições em que vivia: sem comida, sem roupas engomadas ou produtos de limpeza... Mesmo depois de tanto esforço.


Olhou para a maleta com raiva. Abriu rapidamente, com real intenção de destruí-la bem como que houvesse lá dentro. A real culpa era dela, a maleta reluzente de couro. Ficou tão extasiado ao ganhá-la em seus 20 anos que não parou mais de pensar o que viveria com aquela maravilha. Mochilas e malas não seriam mais adequadas? De modo algum, elas foram feitas para isso. Não teria graça. Mas uma maleta, travestida de executiva em meio à poeira do sertão, à brisa de uns Alpes ou mesmo encharcada num mar agitado, isto sim, teria significado. Seria a improvável vida existida de um acessório junto a uma improvável liberdade de um escravo da rotina.


Agora pensava tragicamente. A maleta não era a resposta, mas seu carma. Deixou-se levar tanto pelo anseio de viver essa metamorfose ambulante que se tornou escravo da maleta. Deixou de viver e suprir necessidades essenciais à vida de um homem em função da perfeita organização de um objeto.


Bom, juro que ele pensou nisso por um tempo, mas o brilho da fivela; o organizador de meias dividindo os biscoitos, a bússola e o patê; as camisas (uma social, uma florida e uma básica de tom pastel); a bermuda; o calção de banho; a Aspirina e o Merthiolate... Não, não podia resistir a toda aquela cultura e elementos tão sedutores, essenciais naquela situação que tanto ansiava viver.


Pegou a bermuda e a blusa florida, comeu um biscoito com patê. Foi ao supermercado comprar as coisas para fazer a faxina e abastecer a cozinha. Mas amanhã ele repõe a “Madalena”.

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Coleção Pingos de Quê - by Magaliana