15 novembro 2009

Emancipação egocêntrica

Tinha um ego tão grande que mal podia se enxergar. Talvez por isso não fazia mais a barba ou penteava mais o cabelo. Era um homem aparentemente sóbrio, bem sucedido e feliz com sua existência. Mas visto mais de perto, a coisa mudava de história. Não era ele quem aparecia, era seu ego. Esguio, forte, imbatível. Andava em frente ao seu d-o-n-o (melhor não falar a palavra, ele não aceitava muito bem a idéia, afinal de contas, era um ego). Era galanteador, peralta, conduzia sua vida quase de forma independente, se não fosse seu anexo, seu criador.

Tinha que carregar aquele homem desafortunado para todo lugar. Ficava horrorizado quando tinha que olhar para trás, seja qual fosse o motivo, e se deparava com aquela barba espetecada, aquelas calças no meio da bunda e a cara de malandro daquele homem. Se imaginava só, na maior parte do tempo. Isso lhe rendeu perigosos momentos, como por exemplo a vez que foi atravessar a avenida principal por debaixo da passarela (um ego daquele tamanho não sofreria um acidentes) e acabou esquecendo o pobre anexo bem atrás dele. Ficou até um pouco feliz, quando percebeu que seu criador pelo menos seria marcado com aquele brasão lindo da Mercedes. Mas nada aconteceu, o homem escapou fedendo. Fedendo mesmo!

Certo dia, Egocentrus (nessa época já havia se dado um nome) decidiu que não viveria mais assim. Traçou um plano estratégico para se livrar de seu anexo. Já estava tão grande que o homem nem sonhava com o que acontecia em sua frente, limitava-se apenas às suas obrigações diárias: acordar; ser levado pelo Egocentrus; tomar banho quando o mano Ego dava tempo; comer; dormir; e ficar calado o máximo possível para o outro não passar vergonha.

Egocentrus pensou por meses, de que forma um ego poderia viver sozinho, sem seu anexo. O insight veio como algo maravilhoso e assustador. Afinal de contas o que estava fazendo aquele ego maravilhoso, carregando um trapo daqueles por tanto tempo? O Ego se alimentava de ego! Simples assim! Ele só precisava se alimentar de ego, e poderia dar adeus ao criador, ingrato e moribundo, que o fazia passar vergonha, depois de tudo que Ego fez por ele (ok, não fez por ele, mas para si próprio, o que importa é que os dois levavam a glória).

Certo dia, enfim, contrariando toda sua mordomia e estilo de vida, acordou antes do sol pensar em surgir. Pegou suas ferramentas e começou o trabalho. Sentia-se uma cobra passando pela muda. Aquele exoesqueleto contudo era mais trabalhoso, tinha muitos vasos egossanguíneos unidos a ele. Cortou um por um, costurando seus vasos entre si. Um trabalho de mestre. Teve que se conter por um instante, para não crescer demais e ficar ainda mais difícil de se desconectar do criador. Ao final da operação, lá estava ele, cuidadosamente costurado, diante daquela coisa vazia, mórbida, de aspecto sujo e cansado. Diminuiu uns cinco centímetros nesse momento, e sua barriga roncou feito o diabo. Correu com a mala previamente organizada, e tomou destino pro trabalho, que afinal era dele também, deixando lá a coisa oca deitada na cama, ainda vazando algumas gotinhas de egossangue.

Passando dois dias, Ego já estava morando em um belo kitnet de luxo, acompanhado do ego de uma ninfeta que conheceu na noite anterior. No trabalho, incrivelmente todos o reconheciam, mas não sabia bem ao certo o porquê, não falavam com ele. Daí, de repente, vê o "coisa ruim" chegando no escritório. Egocentrus se desesperou em pensar que o homem ainda vivia sem sua presença. Tinha arranjado um outro ego, menorzinho, com uma mordaça que o Superego pôs, talvez para não se alimentar tanto e num tentar fugir como o mano Ego. O Id ficou naquela, sem querer opinar, tinha adquirido medo do Ego, mas também tinha suas vaidades. Ego quase sempre o mimava.

O chefe chamou a equipe no fim do dia. A empresa tinha virado uma bagunça. Egocentrus não só tinha se tornado insuportável, uma vez que não tinha mais id ou superego para lhe reter, mas também tinha ensinado outros egos da empresa a se alimentarem dos egos menores, desencadeando uma onda de depressão em massa, e uma montanha de gente sem conteúdo, sendo deixada pelos cantos. Os funcionários que sobraram, amarraram a boca dos egos na marra, e combinaram de não trocar qualquer palavra de incentivo ou aceitação no trabalho.

Egocentrus foi demitido, junto ao seu antigo dono, que jurava que estava regenerado e que jamais permitiria aquilo de novo em sua vida. Não adiantou. Tiveram que fazer a faxina no ambiente. Egocentrus foi colocado numa daquelas cadeiras de doação de sangue e passou a tarde todinha passando egossangue para as "cascas vazias" e o homem os colocava em seus postos, para finalmente retomarem o trabalho. Saíram lá pelas dez horas da noite, quase.

A demissão foi dada como justa e nem o homem nem Egocentrus (agora pequeneninho e usando fralda improvisada) conseguiram arrancar nem um seguro desemprego para ver se terminavam o mês com uma ”laminha”.

Um dia desses o chefe chegou comentando lá no trabalho que encontrou com os dois indo para um barraco debaixo do viaduto. O homem manteve o ego raquítico que tinha conseguido com a saída de Egocentrus. Este, por sua vez, tava ainda menor, dentro de um vidrinho, pendurado no pescoço do homem, como aqueles grãozinhos de areia enfeitados que o povo compra em feira por cinco reais. Não sabia dizer como aquela ”miséra” continuava existindo. O homem não conseguiu se desfazer dele, afinal, tinha nascido com ele. Daí uma vez por semana olhava pro vidrinho com ar carinhoso fazendo "cutxi-cutxi".

Um comentário:

Formigando disse...

O impressionante é que
Existem pessoas realmente desse jeito.

Alguem no seu trabalho, nos seus amigos, família.

Acho, que todo mundo conhece alguem assim!
KkKkkKkk

E é horrível!

Coleção Pingos de Quê - by Magaliana