14 fevereiro 2008

A vida como devia ser


Sua vida era agendada. Sempre abria os olhos no mesmo horário. Desligava o despertador no segundo seguinte. Bocejava. Calçava os chinelos e se arrastava para o banheiro. Tudo exatamente na mesma hora, velocidade e trejeitos, todos os dias. Ouvia o noticiário, tomava três goles do mesmo leite de soja. Ia trabalhar.
Camilo sempre saía exatamente às 5h. Sempre se irritava com a mesma poça de lama do mesmo tamanho e no mesmo local na parada de ônibus. E reclamava do esperado, que sempre atrasava 15 minutos exatos.
- Você é bobo ou o quê?
- Hein?
- É, você. Todo dia está aqui. Escuto sempre a mesma reclamação surda, vejo o mesmo chute no ar e a mesma expressão de nojo para a poça de lama, que coitada, nem tem culpa de existir, nunca tapam o buraco.
- Você ta sempre aqui?
- Ah, e também noto todo dia como nunca sou vista. E olhe que sempre entro no mesmo ônibus, antes que você.
- Bizarro.
- É. Muito.
- E onde você desce?
- No mesmo terminal. Trabalhamos juntos, bobo.
- Nossa! Você está de sacanagem, certo?
- Nem um pouco.
- Poxa! Prazer em conhecê-la.
- Amém.
- Mas, por que sou bobo mesmo?
- Você sabe o horário do ônibus?
- Claro! Sempre chego na hora, ele sempre atrasa. Incrível como atrasa sempre a mesma coisa.
- Não. Você deve ter adiantado o relógio em algum momento e como em uma auto-hipnose passou a acreditar que era a hora certa. O ônibus nunca atrasa. Eu sei.

Camilo ri abobalhado. Como nunca lembrou disso? Realmente havia feito isso, em seu primeiro dia de emprego, quando atrasou. Há cinco anos.
- Mas e você?
- Que é que tem?
- Por que sempre chega cedo, como eu?
- Não chego cedo. Eu sempre atraso.
- ?
- Sempre chego atrasada para pegar o ônibus anterior ao seu. Tenho que chegar antes que você, sabe?
- É?
- Sou recepcionista do seu chefe. Mês que vem estou fora. Cansei dele ligando na mesma hora que chego e retornando exatos 30 segundos depois para eu humilhantemente ter que dizer que estava no banheiro.
- Entendo...funciona?
- Para ele tenho colite ulcerativa, “tadinha”.
Risos mútuos.
- Como ele é bobo.
- Sim, é. Nós também.
- De fato.
O ônibus chega.
- Vai sentar na cadeira de sempre, né?
- Observadora. (risos)
- Não é isso. È proibido. Você é mesmo desatento, “idoso”.
- Oh!
Foi então sentar-se ao lado da debochada.
- Como me tolerou esse tempo todo sem dar uma palavra, nem que fosse para reclamar?
- Nunca tive TPM, mas hoje meu hamster morreu.
- Nossa, meus pêsames.
- Está tudo bem.
- Quer dormir comigo? ALMOÇAR!
Silêncio. Camilo roxo, coça a cabeça. A garota ri.
- Almoçar...gostaria de almoçar comigo? Ali mesmo na lanchonete do trabalho...perdoe-me.
- Qual sua casa? É na rua Estreita, né?
- É...fala sério?!
- Não chego sempre atrasada – risos – você é bobo, definitivamente. Mas então, foi sem querer mesmo?
- 47
- 47?
- 47, não acredito...
- Sou alérgica a crustáceo e detesto flores. Até mais.


9 comentários:

Capitão-Mor disse...

Nossa, você tem um humor muito original!
Parabéns por mais um texto deste calibre...

Lucas, o Foca disse...

E depois dizem que ficar olhando uma pessoa sempre fazendo a mesma rotina não dá para ser "previsível".

Gostei desse texto Magali, e olha que as vezes essa rotina pode se tornar perfeita. Tão perfeita que não a percebemos... e passamos a encará-la com maior naturalidade.

Abraço

Clever Cesar disse...

Camilo sofre de disfunção espaço-temporal. Nota-se isso quando ele muda o horário no relógio e acredita que a nova hora é a que prevalece e que todos devem acertar seus relógios com o dele. No episódio em que ele já chama a jovem para ir dormir com ele, notamos que ele em sua pseudo-realidade acredita conhecer e ter bastante intimidade com ela a ponto de convida-la pra ir dormir com ele. Fica claro também traços de uma pessoa reprimida sexualmente, pois ao não ter uma companhia feminina em sua cama a muito tempo Camilo tem seu estress elevado, descontando tudo em pequenas coisas como a poça de lama e afins.

Camilo a meu ver deveria ser internado, pois seu comportamento coloca em risco a sociedade, principalmente por criar a imagem de uma mulher que lhe dar bola para preencher o vazio. A imagem da mulher foi concebida a partir de um cartaz de festa onde uma mulher semi-nua aparece em cima de uma cama. A partir dai Camilo passa a ter alucinações indo de uma canto a outro com o cartaz citado em sua mão conversando com ele.

Magaliana disse...

EEIIII!!!!!
QUE FIQUE BEM CLARO QUE ESSA MULHER EXISTE, PELO MENOS NO TEXTO!
kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk
num venha dizer que a pobre é uma alucinação só pq vc achava que ele tava falando com um poste no início do texto não, senhor Clever...caramba...cê fumou o que, menino?
rsrsrs
amei o coment.

Formigando disse...

Que viagi da bixiga desse omi aí em cima!
rsrsrs

Parabens de novo Môw
:)

Maísa Caldas disse...

muito bom o textoo!
nossa! adorei!
=)~
como uma rotina... shuahsuasa

muito bom!

Guabiras: disse...

Okkkkkkkkkkkkkkk
primeiro vamos investigar essa historias
de conta srsrsr
ah não ser que o serviço de banco ai de Natal seja mais "eficiente" que o de fortaleza sic!

mas bom,
acertou na veia
mais uma vez.
Acho que é uma dos melhores
que ja li,
diálogo estranho mais
engraçado. toca no miolo do cérebro
e faz plim!
srsrsr
ce entende!

aranhou até o cabra lá em cima. Sic parte 2!

beijo na testa da
birrentinha afobada!
kkkkkkkkkkkkkk

*hoje entupo o blog, po esperar!

Guabiras

Evelyne Furtado. disse...

KKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKK
No estilo mariano, eu ri com o seu texto. Õ povo doido hem, Mariana!
Parabéns pela originalidade.
Beijos

Anônimo disse...

Mari, o Paulinho da Viola plagiou você com a tal SINAL FECHADO. É claro que ele fez em 1976 uma psiografia do futuro(num sei se existe, mas deve ter sido isso). Acredito até que ele é o motorista do ônibus no qual viajam o Camilo e mãe do falecido hamster. Enquanto ele diz "Olá como vai? Eu vou indo, e você, tudo bem?" O Camilo diz "Você ta sempre aqui?"
Bom, se o Clever pode viajar transcendentalmente na psicologia da sua crônica, eu também musicalmente transceder na sua crônica.
Valeu. Mari! Muito legal! Já vale uma "talhada de melancia".
Beijos.

Tassoares

Coleção Pingos de Quê - by Magaliana